quarta-feira, 23 de março de 2011

Encontro com Saturno

Estava na estrada, num desses momentos em que dirigia apenas pelo prazer, sem rumo certo, apenas para reflexão... A constante na estrada costuma trazer conclusões rápidas, onde um devaneio não pode durar mais de dois segundos. Com a atenção dobrada, é fácil esvaziar a mente, e conseguir concentrar-se para o que realmente importa.

Não foi diferente nesse dia, havia entrado em conflito após fazer algumas contas, quando resolvi refletir o por que desse 'balanço' nunca equilibrar-se. Tudo estava confuso, de repente ouvia vozes fazendo perguntas e mais perguntas, cujas respostas eu sabia, mas tinha vergonha de pronunciá-las: o que você fez, o que você tem, o que você é, o que pretende mudar, o que pretender ganhar, aonde quer chegar?? Elas assolavam meu ego, a negativa não saia de minha mente, de meu ser... Nada! Nada! Nada! E... Não sei, não sei, não sei... O odioso não saber, que paralisa muitos e assusta outros tantos que chegam nessa passagem. Lembrei-me de Atreiú (História sem fim) quando tenta passar pelas esfinges - "somente aquele com o coração sincero consegue passar..." e qualquer dúvida sobre sua coragem, seu ser, pode impedí-lo de passar, e seu caminho ter um fim não desejado.*

Comecei a buscar um lugar para parar um pouco e tomar um bom e forte café, pois percebi que o passeio daquele dia iria durar um pouco mais do que de costume. Não conhecia a estrada, levei quase meia hora para encontrar um lugar aberto, claro, sempre faço essas viagens a noite, é como uma proteção. O estacionamento estava praticamente vazio, podia chegar a algumas conclusões: ninguém mais com insônia ou o café seria uma droga. Bem, não tinha escolha, parei ali mesmo. Pedi o café, e voltei ao carro devagar, notei alguém sentado perto, na guia. Entrei no carro, mas minha atenção voltou-se para a figura parada próximo ao carro, era um velho, ou alguém que aparentava ser velho, e brincava com um isqueiro. Não fechei a porta, virei-me em sua direção, e ofereci o café, que foi recusado rapidamente. Iria deixá-lo ali, o que me importava, tinha outras coisas a buscar, refletir, que diferença faria??

- A diferença está em como encaramos tudo... a vida, os problemas, as pessoas...

- O que? O Senhor está falando comigo?!?!?!?

- Tem mais alguém aqui?

Ok. Entendi. Agora mendigos leem pensamentos, e respondem as grandes dúvidas da humanidade, ou sei lá, simplesmente do meu insignificante ser...

- Insignificante é a maneira como Você decidiu se enxergar!

- Ok. E posso saber quem é você ?

- Isso não importa agora, importa quem é Você! Não importa nem a maneira como me vê, mas atente ao fato que posso ser apenas um espelho... Eu sou o que sou, e Você, é o que é? O Tempo não pode ser recuperado, então, por que perdê-lo buscando o que já encontrou? Todas as perguntas, tornam-se respostas um dia, mas quando viram respostas, as perguntas mudaram e a isso chamamos ciclo. E o ciclo nunca pára, não importa onde você esteja. O problema, não são as perguntas, mas o que Você faz com as respostas.

Entrei no carro, havia encontrado respostas demais para uma viagem só, olhei pelo retrovisor, e como já esperava, o velho não estava lá. Até a próxima, pois agora, estou indo pra casa. Quem sabe fazer mais perguntas...


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* "...a Porta do Grande Enigma..., ...as duas esfinges. Essa porta está sempre aberta... O que é lógico. Não tem batentes. Apesar disso, ninguém pode passar para o outro lado, a menos que..., as esfinges fechem os olhos. E sabe por quê? Porque o olhar de uma esfinge é totalmente diferente do olhar de qualquer outro ser. Nós e todos os outros seres olhamos para alguma coisa. Vemos o mundo. Mas uma esfinge não vê nada: em certo sentido, é cega. Em contrapartida, seus olhos transmitem algo. E o que seu olhar transmite? Todos os enigmas do mundo. Por isso, as duas esfinges estão sempre a olhar uma para a outra. Porque só uma esfinge pode suportar o olhar de outra esfinge. E agora imagine o que será de uma pessoa que se atreva a interferir na troca de olhares entre ambas! Fica ali, petrificada, e não poderá mover-se antes de ter decifrado todos os enigmas do mundo."
(História Sem Fim, de Michael Ende)

terça-feira, 1 de março de 2011

Ajuda silenciosa

A garotinha estava sentada no meio fio, chorava copiosamente quando lhe perguntei o que havia acontecido para tanta tristeza. Aos soluços, ela me explica que havia derrubado o leite, e o pote havia se quebrado e não tinha outro para substituir, - ela carregava o leite em um pote de vidro, sua capacidade devia ser maior que 1 litro - e diante disso, estava com medo de voltar para casa, preferia ficar ali, chorando e chorando.

Não sabia como ajudá-la, pensei, e tentei arrumar uma solução, nenhuma de minhas sugestões foram aceitas, tal como "o que acha que explicar para sua mamãe que foi sem querer?", e "se você disser que paga o próximo?". Nada surtia efeito, era praticamente impossível plantar um sorriso naquele pequeno rosto. Resolvi deixá-la, não sabia exatamente o que fazer, mas ali, nada conseguiria.

Continuei a caminhar na rua de paralelepípedos, mesmo depois de muito andar, ainda ouvia os soluços da garotinha. Eu não sabia para onde estava indo, mas parei em frente ao que seria a possível solução: a mercearia. O dono estava lendo um jornal distraídamente ao fundo do balcão, o rapaz que o ajudava ia de um lado para o outro atendendo desde crianças assustadas a senhoras apressadas. Estava difícil de chamar a atenção de alguém naquele lugar, mas tive uma idéia!

O dono parecia uma boa pessoa, mas estava por demais entretido em seu jornal, assim desisti dele, ao menos, por enquanto. Olhando melhor, notei uma jovem senhora a um canto, esperando tranquilamente por sua vez, seus olhos doces chamaram minha atenção, assim a escolhi para ajudar a garotinha triste. Esperei que ela fizesse o pedido, e sussurrei lhe que poderia comprar um pote a mais de leite, para o caso de uma eventualidade, como fazer seus famosos pãezinhos para uma visita inesperada... Para minha surpresa, rapidamente ela atendeu meu sussurro, e dobrou a quantidade de leite, farinha, fermento. Fiquei feliz, havia conseguido uma parte, agora precisava mudar seu caminho, o que não era difícil, já que a garotinha estava a alguns quarteirões da avenida principal, e como chorava alto, difícil não chamar atenção. De qualquer forma, acompanhei-a, para não haver enganos, seus ouvidos atentos logo se alarmaram e procuravam a origem do choro, sem influência alguma, ela encontrou a garotinha. Fiquei feliz por ter escolhido a pessoa certa.

A jovem ajoelhou-se aos pés da menina, e perguntou-lhe o que havia acontecido. A garotinha olhou para mim, e falou "você não precisava ter trazido sua mãe!!" - enquanto isso, a jovem a encarava com olhar duvidoso, e insistia em saber o que havia acontecido.

- "Por que você não contou pra ela? Eu derrubei o leite e não posso voltar assim para casa!"

E voltou a chorar e encolher-se, aliás, suas lágrimas praticamente não existiam mais, de tanto que já chorara. A jovem, com um pouco de dificuldades, entendeu, e ofereceu um de seus potes a garotinha, que recusou, e disse que seria pior chegasse em casa com um pote diferente. A moça insistiu, explicou, disse que a acompanharia, mas nada colocava um sorriso naquele rosto. Assim, sugeri que deixa-se ali o pote e partisse, e ela assim o fez.

Quando a jovem levantou-se, e continuou seu caminho, deixando um pote para trás, a garotinha parou um pouco, e entre soluços e perguntou-me:

- Você não vai com sua mãe?

- Eu já estou com ela... :-)
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